meus amigos do passado

envelheceram

e eu ainda carrego comigo

o carretel linha impregnada de cerol.

não tenho outros motivos,

não tenho outras decisões. a

sombra e o reflexo estão

tais e quais

à deriva de si mesmo.

eu sou o estar à deriva.

não imagino como possamos acreditar em outras coisas que não aceitamos como nossas.

meus amigos do passado

são novos e distantes

meus fantasmas do presente

são contínuos e próximos.

eles se alimentam,

eles se vivem,

eles se bastam.

foi-se um tempo
de longas nuvens

há tempos que o céu está limpo
claro limpo clean
e há muita confusão abaixo dele

foi-se o tempo
das longas nuvens

há tempos que não se guardam mais segredos
e que se admite
o bizarro como sendo realidade

não se admite, todavia
o tempo que se foi.

o amor é uma quase razão

o amor mal se sustenta
em seus princípios
mal se orienta

o amor mente quando
piegas
nega sua existência
o amor mente quando
insolúvel
se autoabsorve
soberbo

o amor teme a vergonha
o ridículo
a calefação e o resfriamento

o amor é uma quase razão

é uma portinhola mal fechada
asa mal aparada
nota mal sustenida
bebida mal curtida
feriado em final de semana
dia santo sem procissão

é quase desculpa

tudo tudo isso
propositalmente.

todo dia eu apago
uma quantidade média de e-mails
que nem chego a ler

mais cedo me dei conta
de nunca ter recebido uma carta
que não fosse cobrança
ou propaganda enganosa

todo dia eu apago

invento o cais
intento o caos

e sei a vez
de me enganar

eu já não sei.
tenho olhado o mundo
interpretado as circunstâncias,
aderido aos projetos que passam além daquilo que sou
e tudo aquilo que me faz
faz sentir das coisas
a eterna descoberta do universo.
quem me dera sonhos e vantagens
não sou eu o herdeiro da inconsciência.
os poucos propósitos que me restam
me fazem enxergar e ver
que nada disso é tão real
como a chuva que cai leve e soberana
nos paralelepípedos de minha rua.
queria sim que tudo fosse tão fácil
queria que tudo fosse tão perfeito como essas individualidades são.
queria convencer-me o erro
e aceitar, no entanto
os dias de minha indecisão.
sou pequeno perdido
entre tantos desertos e almejos
sou discreto alarido entre diversos anseios.
singela ave, que habita o receio da dor real
desperta em meu peito tua inconsistência
pois sou apenas a margem,
a abóboda
o que não consegue e está além.
sou o precipício,
a pedra que solta
a flor e o imaginário.
sou o medo da correnteza.
sou a força que se indecide.
sou nada. tampouco nada.
mas talvez, caso caiba a dissolução do que concentro
sou o espaço,
a fúria, o som e o desaconchego.
aquilo que passa devagar,
vai e some
como gota d’água ao sol.

prefiro as pessoas em estado-água,
estado-líquido,
estado-fluido.
pessoas estado-pântano,
estado-musgo e estado-seiva,
estado-sangue.

pessoas-líquidas umedecem olhos facilmente,
pessoas-líquidas suam,
transpiram,
exalam.
pessoas-líquidas molham.

prefiro pessoas em estado de liquidificação.
que derretem,
pessoas que encharcam.

pessoa-líquida é pessoa boa,
é pessoa real,
é pessoa viva.
pessoa-líquida é pessoa-verdade,
é pessoa-presente,
é pessoa que não mente,
é pessoa-céu.